segunda-feira, 27 de junho de 2016

Pisciana

''Ela tem dois caminhos que se confundem quase sempre. De um lado, sonha em chegar lá – mesmo que não saiba exatamente onde é esse lugar. Acredita que mais importante que o caminho são as pessoas que encontra no meio dele. Para o barco, dá carona, gosta de companhia. Seu jeito é meio à luz de velas quando o sol desaparece no horizonte.
Ama como se houvesse amanhã, como se fosse durar uma vida inteira porque ela tem esperança. Pra ela não acaba, não se finda, não vai sumir num piscar de olhos. Pensa que o mundo inteiro se resolve num abraço, muito mais que num beijo. E envolve, se envolve, é sempre num cruzar de braços. Mal dá pra ver que ela é cheia de abismos, que por dentro ainda existe alguma coisa que não a deixa sossegar. Continua nadando.
Se alguma coisa a machuca, prepara-se pra mudar de rumo. Já te contei que existem dois caminhos pra ela, e que eles se confundem. Nada pra baixo com toda a força do mundo quando tem que nadar. Mergulha com tudo, ela é intensidade pura. Vai no fundo do oceano e não prende o ar, não precisa disso. Se mistura com as ondas e vem de forma violenta. Te acerta ainda na praia e toda a tranquilidade de antes se transforma num turbilhão. Mas foi você quem provocou isso, foi você que pediu pra ver. Ela escapa como se tivesse guelras.
Ela se recusa a largar sua moradia. Seu corpo, sua casa. Quem tenta violar suas regras encontra placas de aviso na surdina, na calada da noite, em toda janela que deixa aberta. Algumas setas, alguns alvos. Ela não quer que você chegue perto, não quer que você entre. Melhor se afastar, melhor deixar pra lá. Ela parece frágil feito líquido, transparente feito água, mas você já conseguiu enxergar as profundezas de qualquer mar? Não, nem vai enxergar as dela. Ela não deixa.
Sonha com um mundo que ainda não existe, sonha com alguém que ainda não existe, sonha com tudo. Seria capaz de viver nos sonhos e construir sua vida neles. E constrói, na verdade. Tudo em volta dela é sonho, tudo em volta dela é algo que você não consegue ver. Ela vê. Ela enxerga coisas que ninguém enxerga o tempo todo. Talvez porque essas coisas estejam dentro dela, dentro dos tesouros perdidos num naufrágio submerso, e não nas coisas que você jura que vê na superfície.

Daniel Bovolento, publicado em: http://entretodasascoisas.com.br/

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